JUSTIÇA

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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A última pérola do Supremo Tribunal Federal: o advogado não pode ser paciente em habeas corpus

Por RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA
Promotor de Justiça
Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal)
Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso Coordenado pelo Professor Calmon de Passos)
Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático


"Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? (...) Ó tempos, ó costumes!"[1]

Em recentíssima decisão, por inadequação da via processual, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal não conheceu o Habeas Corpus nº. 118913 impetrado pelo advogado W.A.R., preso preventivamente e denunciado pelos crimes de formação de quadrilha, fraude processual, falsidade ideológica e estelionato. O relator, Ministro Luiz Fux (que, decididamente, não sabe nada de Direito Processual Penal), pronunciou-se pela extinção do processo, e foi seguido por maioria dos votos da Primeira Turma. O Ministro destacou que a acusação trata de crimes supostamente praticados por um advogado, “que tem o dever ético de velar pela inteireza da esfera jurídica das pessoas”. Ao considerar prematuro o Habeas Corpus, o relator julgou extinta a ordem por inadequação da via eleita: “A nossa jurisprudência tem sido bastante severa com a prática de ilícitos por parte de estelionatos advocatícios”, observou o relator. Ele foi acompanhado pelos Ministros Roberto Barroso, Dias Toffoli e Rosa Weber (idem), ficando vencido o Ministro Marco Aurélio (para variar...).

Sem adentrar o mérito (se devia ou não ser concedida a ordem), a questão que causa estranheza é o não conhecimento do Habeas Corpus pela sua suposta inadequação processual! O que tem a ver uma coisa com a outra? O que tem a ver o dever ético do advogado “de velar pela inteireza da esfera jurídica das pessoas” com o interesse-adequação em uma ação penal como é o processo do Habeas Corpus? O que tem a ver “a prática de ilícitos por parte de estelionatos advocatícios” com o exercício da ação penal e com a utilização de uma garantia constitucional? Se fosse o caso, o pedido deveria ser conhecido (afinal de contas o paciente está preso!) e, no mérito, denegada seria a ordem (se não tivesse caracterizado o abuso de poder ou ilegalidade na decisão da prisão preventiva).

Confundiu-se, desgraçadamente, “alhos com bugalhos” e, lamentavelmente, mais uma vez, a Suprema Corte fechou os olhos para uma (única e eficaz) garantia constitucional que temos para o direito de locomoção.

Pontes de Miranda, se vivo, espernearia! Rui Barbosa, pior! Pedro Lessa ficaria ruborizado... Óbvio que não falarei de João Sem-Terra, nem dos barões ingleses, pois estes, muito possivelmente, não tinham ideia do bem que faziam àquela altura para a liberdade humana (Carta Magna , 1215).

Em outras oportunidades já afirmamos, e agora reiteramos (ipsis litteris), como é lamentável que o habeas corpus vem sendo achincalhado pelos nossos juízes, tribunais e, incrivelmente, pela Suprema Corte (veja, por exemplo, o esdrúxulo Enunciado 691 da súmula do Supremo Tribunal Federal).

Aliás, anteriormente, a Primeira Turma já havia reformado o seu entendimento para não mais admitir habeas corpus que tenham por objetivo substituir o Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Segundo o entendimento da Turma, para se questionar uma decisão que denega pedido de habeas corpus, em instância anterior, o instrumento adequado é o Recurso Ordinário e não o habeas corpus. A mudança ocorreu durante o julgamento do Habeas Corpus (HC) 109956, quando, por maioria de votos, a Turma, acompanhando o voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio (quem diria...), considerou inadequado o pedido de habeas corpus de um homem denunciado pela prática de crime de homicídio qualificado. Segundo o Ministro Marco Aurélio, relator, há alguns anos o Tribunal passou a aceitar os habeas corpus substitutivos de recurso ordinário constitucional, mas quando não havia a sobrecarga de processos que há hoje. A Ministra Rosa Weber acompanhou o voto do ministro-relator no que chamou de “guinada de jurisprudência”, por considerar o habeas corpus, em substituição ao recurso constitucional, um meio processual inadequado. A Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha e o Ministro Luiz Fux também votaram no sentido do novo entendimento. A questão foi decidida no julgamento do HC 109956, mas começou a ser discutida quando a Turma analisou o HC 108715, durante a apresentação de uma questão preliminar no voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio. Em sua preliminar, o Ministro defendeu que a Turma não mais admitisse o uso do Habeas Corpus para substituir o Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Segundo o Ministro Marco Aurélio “o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, além de não estar abrangido pela garantia constante do inciso LXVIII do artigo 5º do Diploma Maior, não existindo sequer previsão legal, enfraquece este último documento, tornando-o desnecessário no que, nos artigos 102, inciso II, alínea “a”, e 105, inciso II, alínea “a”, tem-se a previsão do recurso ordinário constitucional a ser manuseado, em tempo, para o Supremo, contra decisão proferida por Tribunal Superior indeferindo ordem, e para o Superior Tribunal de Justiça contra ato de Tribunal Regional Federal e de Tribunal de Justiça”. E acrescentou: “o Direito é avesso a sobreposições e impetrar-se novo habeas, embora para julgamento por tribunal diverso, impugnando pronunciamento em idêntica medida implica inviabilizar, em detrimento de outras situações em que requerida, a jurisdição”. No julgamento desse habeas corpus (108715) o Ministro Luiz Fux lembrou que assim como o Tribunal já decidiu que não cabe Mandado de Segurança como substituto de recurso ordinário, assim também deve ser para “não vulgarizar a utilização do habeas corpus”. Fonte: STF.

Ora, como se sabe, o habeas corpus deve ser necessariamente conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, pois se visa à tutela da liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[2]

Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[3] Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.

Ademais, não há falar-se em “inadequação da via processual” quando o paciente está preso preventivamente. Poder-se-ia, como já afirmamos, denegar a ordem, óbvio, mas não deixar de conhecer a ação.

Não por menos, Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz afirmam que “(...) el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento”[4]

O problema, no fundo no fundo, ainda é o nosso Código de Processo Penal (e não só ele, óbvio…). A propósito, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, afirma que “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto doCodice com a cara do regime (...) ”[5]

Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”[6] Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Como também magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.”[7]

James Goldshimidt[8] já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais.[9]

Abaixo, portanto, aos chavões, meramente retóricos e fascistas, tais como “dever ético de velar pela inteireza da esfera jurídica das pessoas” e confundir ética com condição para o exercício da ação penal do Habeas Corpus.



[1] Palavras que Marco Túlio Cícero, o maior orador romano de todos os tempos (que ascendeu à posição de cônsul, entre os anos de 64-63 a .C), dirigiu ao seu grande rival na disputa pela mais alta posição da Magistratura de Roma, Lúcio Sergio Catilina. Certo dia, Cícero foi ao Senado e disse em frente a Catilina e aos presentes, para que todos ouvissem, o seguinte: "Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas. Ó tempos, ó costumes!"


[2] História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.


[3] Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.
[4] Derecho Processual Penal Chileno, Tomo I, Santiago do Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.]


[5] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.


[6] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.


[7] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.


[8] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12).


[9] ApudJosé Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.




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