JUSTIÇA

JUSTIÇA

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Empresas do mesmo grupo econômico, ou pertencentes a parentes entre si, podem disputar a mesma licitação?

Por

IVAN BARBOSA RIGOLIN
Advogado/SP



Licitação. Pessoas jurídicas e pessoas físicas. Empresas do mesmo grupo em uma licitação. Empresas pertencentes a parentes entre si. 1. É princípio basilar de direito, consagrado há alguns séculos, que pessoas jurídicas não se confundem com as pessoas físicas suas proprietárias. Assim era em nosso anterior Código Civil, e assim permanece sendo no atual. Fora de outro modo, não haveria razão alguma para se instituírem empresas. 2. Em uma licitação, aberta indiscriminadamente aos fornecedores do ramo pertinente ao objeto licitado, podem regularmente participar quantas empresas desejarem, pertencentes ao mesmo proprietário, ou ao mesmo grupo, ou a proprietários vinculados por matrimônio, parentesco ou outra relação familiar, sem qualquer possível obstaculização pelo poder público, porque juridicamente insustentável.


Explicação inicial

Este artigo constitui ampliada atualização de outro, publicado em 2.002 em duas revistas técnicas sob o título Licitação – empresas do mesmo grupo econômico podem concorrer na mesma licitação. Insiste-se no tema, sobre o qual aliás pouco se escreve, em face à sua absoluta atualidade, ou mesmo seu permanente interesse. Dificilmente este assunto envelhecerá, como dificilmente a conclusão a que se chega será diferente desta aqui exposta – e se e quando o for não queremos estar presentes.

Nesta atualização se inclui referência ao pregão e à previsão do novo Código Civil equivalente ao art. 20 do antigo, ambos que ao tempo do texto originário inexistiam, e ainda a uma decisão do e. Tribunal de Contas da União no sentido da conclusão.

I - Temos recebido, ininterruptamente desde longa data, freqüentes consultas e indagações, quase invariáveis em seu teor, sobre a possibilidade jurídica de mais de uma empresa integrante do mesmo grupo econômico, ou da mesma família de proprietários, ou da mesma pessoa natural, ou pertencentes a pessoas casadas ou aparentadas entre si, participar como licitantes distintas de um mesmo procedimento licitatório instaurado pelo poder público.

Inquire-se nessas consultas, em suma, se sob o ponto de vista jurídico é legal ou regular, ou por outro lado seria irregular ou ilegal, a participação, em uma dada licitação, de empresas - pessoas jurídicas distintas - cujos quadros societários incluam pessoas unidas por vínculo familiar, ou econômico. Uma específica indagação foi sobre se poderiam concorrer entre si empresas sendo sócio de uma o marido da sócia de outra, porém variam as situações dentro desse sintetizado quadro. 

Informa-se ainda – e isso é importante - que os certames em questão são concorrências, tomadas de preços e pregões, presenciais e eletrônicos, e não convites.

A preocupação demonstrada em todas as consultas revela-se evidente, e é a seguinte: em participando do mesmo certame empresas do mesmo grupo, ou empresas a cujas propostas a(s) mesma(s) pessoa(s) teria(m) garantido acesso, esse fato porventura não afrontaria o princípio e a regra do sigilo das propostas, sabido e conhecido direito dos participantes de toda e qualquer licitação ?

Não favoreceria o conluio e os arranjos de toda ordem entre os participantes ? Não afrontaria tanto a regra da igualdade entre os licitantes quanto, por isso mesmo, à da competitividade ?

Antes de prosseguir seja reiteradoque não se fala neste momento de convites, mas apenas de concorrências, tomadas e de preços e pregões.

II - Não, é a resposta. Respondamos desde logo, para a seguir justificar.

Esse fato de empresas que concorram às mesmas licitações pertencerem ao mesmo grupo econômico, ou à mesma família, ou a sócios comuns, ou a amigos, associados ou colaboradores entre si, ou casados entre si, é bastante freqüente em licitações - e não apenas em nosso país -, e nada contém de irregular, antijurídico, condenável ou ilegal, e pelas mais variadas razões, como as seguintes:

1ª) quem, hoje no Brasil, tem a suficiente coragem pessoal de constituir uma média empresa comercial assume, desde logo, sérios compromissos financeiros relativos a investimentos necessários, que são mais seguros ou menos seguros;pesadíssimas obrigações tributárias e fiscais; pesadíssimas obrigações trabalhistas; pesadíssimos encargos previdenciários relativos aos empregados; grandes riscos comerciais frente à concorrência e às instabilidades do mercado, sem falar dos graves riscos de condenações judiciais em face de tudo aquilo, em diversas Justiças e variadas esferas judiciais. Somente para ilustrar com fato sabido, mais da metade das micro e das pequenas empresas instituídas no Brasil se encerram entre o primeiro e o segundo ano de existência.

O chamado “custo Brasil”, que é próprio do terceiro mundo e de nações subdesenvolvidas; que em nosso país obriga as pessoas a trabalharem mais de cinco meses a cada ano antes de ganharem para além de pagar tributos, e que no mais resume todos aqueles compromissos e riscos, constitui uma permanente espada de Dâmocles pendente sobre todo e qualquer intrepidismo empresarial, e sobre a cabeça e o pescoço de todo empresário nacional, desde o dia em que constitui a empresa até, quiçá, muitos anos após dissolvê-la;

2ª) se alguém ou se algum grupo familiar ou econômico, inobstante todo o risco e o complexo obrigacional mencionados, além de instituir uma empresa institui mais de uma com o mesmo objeto comercial, então além de se sujeitar mais de uma vez ao “custo Brasil” e a todas as vicissitudes acima apontadas, concorre consigo mesmo, e se uma de suas empresas ganhar a licitação outra estará perdendo, e precisará arcar com o preço disso;

3ª) visto isso, acusar de cartelização ou “lobby” a empresas de um mesmo grupo que concorram em um mesmo certame é repetir o episódio do ovo de Colombo: se é tão fácil, tão seguro, tão barato, tão simples e tão descomplicado constituir várias empresas, e as pôr para entre si concorrerem em certames licitatórios, então por que motivo mais empresários não o fazem? Se essa “mina de ouro” é tão acessível e cômoda, por que mais gente não constitui grandes redes empresariais e comerciais, para com isso ampliar as possibilidades de vencer concorrências abertas pelo poder público? 

Se manter diversas empresas, com dezenas, centenas ou milhares de empregados sustentados por atividades comerciais cujo mercado varia de a a z a cada dia que passa é mesmo algo tão confortável e prazenteiro, por que razão muito mais brasileiros não desfrutam de tais delícias ?

III - Fora irregular que empresas de um mesmo proprietário comparecessem às mesmas licitações, então uma empresa do grupo econômico Votorantim, durante muitos anos o maior do país, não poderia concorrer, em uma concorrência aberta a todas as empresas fornecedoras daquele mesmo objeto, com mais de uma empresa do grupo. Um banco, de um grupo econômico, não poderia concorrer com outro banco do mesmo grupo, em uma licitação aberta pelo poder público - e isto, em direito, é simplesmente ridículo. Ou do grupo Matsushita, ou do grupo GM, cujo orçamento mundial é maior que o do Brasil, ou do grupo Nestlé, ou do grupo Dupont, ou de tantos outros.

Ou de outro modo uma empresa não poderia propor um produto seu, e outra empresa do grupo propor outro produto, ambos que atendam o edital, como aliás é extremamente comum e usual em nosso país a cada dia que passa.

Fora irregular aquela “autoconcorrência”, então uma empresa do grupo a que pertence a construtora Camargo Correia, ou a OAS, ou a Andrade Gutierrez, ou a Mendes Júnior, ou a Constran, ou qualquer outra pertencente a algum grupo do mesmo imenso porte, que com freqüência vencem concorrências internacionais competindo com as maiores empresas do mundo, não poderia participar de certame do qual participasse outra do mesmo grupo - como se as empresas se confundissem com as pessoas naturais ou físicas de seus proprietários !

Fora aquilo irregular, então a fábrica Audi, que pertence à Volkswagen, estaria impedida de concorrer com a VW numa licitação para compra de veículos ! E, ao tempo em que existia a Autolatina, consórcio ou associação entre Ford e VW, ambas estariam proibidas de concorrer na mesma licitação ! 

Numa licitação para a compra ou o fornecimento de passagens aéreas, a empresa Rio-Sul, que pertencia à extinta Varig, não poderia participar, cotando seus preços, se a Varig também participasse. Nem a empresa Nordeste, que ao mesmo grupo pertencia em idos tempos. Nem alguma menor empresa do grupo TAM, se a própria TAM participasse. Ou da GOL.

Uma empresa do grupo empresarial Pão de Açúcar estaria impedida de concorrer com outra do grupo, no mesmo certame. Cada conglomerado econômico - desses gigantescos e quase indimensionáveis como o são o grupo Bradesco ou o Itaú - apenas poderia permitir que uma de suas empresas , dentre por vezes as centenas que o integram, participasse de cada licitação ! A fiscalização interna necessária haveria de ser então, e somente ela, fantástica !..

A Microsoft não poderia propor contra a Apple, [porque o principal acionista da primeira detém 30% da segunda...

Um canal integrante da Rede Globo não poderia propor em uma licitação da qual participasse outro, dentre as dezenas que a organização possui. E o mesmo se diga da Rede Bandeirantes de televisão, ou da rádio Jovem Pan. Uma faculdade do grupo X não poderia participar de um certame de que participasse outra do mesmo grupo.

Se a matéria é apenas para dar risada, então valem aquelas proibições.

IV - Quem, sendo de profissão jurídica, acaso não vislumbre o insuperável e despropositado ridículo contido em tais supostas, hipotéticas e fantasiosas proibições, então a nosso ver, e lamentavelmente, precisará reaprender os rudimentos do direito, os seus fundamentos basilares e os princípios verdadeiros que o informam e supedaneiam - e não aqueles inventados a cada dia que corre pelos moralistas de ocasião ou de fachada, e que servem a talho para oradores em formaturas de curso colegial por correspondência.

E precisará também cientificar-se de que o direito positivo há de ser objetivo e não se pode se prestar a discriminações ou a preferências momentosas ou da moda do dia, nem ditadas por impulso ou por confusa ideologia. A ciência jurídica jamais condiz com arroubos próprios de leigos ou tecnicamente desinformados, ou com os daqueles que no dizer correntio das pessoas ouvem cantar o galo sem saber onde, e que gostariam que o direito fosse como eles pretendem, e não como de fato é.

O direito não abriga preconceitos de nenhuma espécie, nem pode a sua aplicação prestigiar idéias precipitadas, tendenciosas, facciosas ou partidárias, ou aquelas que, por não meditadas por tempo bastante ou por não crivadas pela mais desinteressada reflexão, na sua pretensiosidade tangenciem a frivolidade e a leviandade. Direito não é entusiasmo – mesmo de idealistas ! ([1])

Julgar açodadamente alguma coisa, e decidir “pelo que está cheirando” constitui, em direito, atitude tão inculta quão perigosa, e de um tão irresponsável primitivismo que recorda o método da inquisição religiosa medieval, a conduzir invariavelmente ao abismo, ao retrocesso, ou, no mínimo, à estagnação cultural - que significa o mesmo.

V - Voltando ao plano prático das licitações e aos casos concretos que surgem na vida diária da Administração, tudo o que acima foi considerado é tanto mais ponderável quando se trata de alguma licitação que por força de lei é e precisa ser sempre aberta a todos os possíveis fornecedores que se habilitem, sem qualquer prévia restrição ou discriminação legalmente admissível como é o caso das concorrências, das tomadas de preços e dos pregões.

Isto, estas modalidades licitatórias, só em si, caracterizam ainda melhor a impossibilidade de se restringirem quaisquer participações, apenas porque acaso exista algum vínculo, seja familiar, seja empresarial, seja associativo de qualquer natureza, entre alguns licitantes, ou entre todos eles porventura.

Sim, porque em tais casos estaremos diante ou de uma concorrência, que é aberta indistintamente a todo e qualquer interessado, do ramo ou não, cadastrado ou não, que se habilite, ou então diante de uma tomada de preços, modalidade licitatória aberta a todos os fornecedores cadastrados ou que previamente como tal se habilitem no prazo da lei nacional de licitações, a Lei nº 8.666/93, em seu art. 22, § 2º, e que é de até três dias antes da abertura dos primeiros envelopes. 

Ou então, mais modernamente e de modo cada vez mais dominante e onipresente, estaremos em pregões, sejam presenciais bem a gosto dos antigos como o autor, sejam eletrônicos e virtuais, virtualmente detestados pelos mesmos antigos seres. Essa modalidade simplesmente arrebenta qualquer dirigismo, parcialidade, tendenciosidade ou facciosidade desde a origem, pois que representa o que existe de mais aberto, democrático, livre e participativo em tema de licitações.

Com efeito, dirigir maliciosamente um pregão – cujo edital seja isento e à prova de impugnações ou mandados de segurança - exige habilidades pouco comuns ao grosso das pessoas, e mais próprias de magos, adivinhos ou, prosaicamente, pajés, ou sejam seres dotados de clarividência e acaso voltados ao egoístico interesse, como poderiam não ser. Em não contando com tais apanágios, direcionar pregão constitui tarefa de Hércules.

Reitere-se agora que não se está diante, sequer, de carta-convite, que é pela mesma lei de licitações dirigida a certos e predeterminados fornecedores. Não ! Em absoluto, mesmo que a lei não pretenda viciar o certame mas apenas dirigi-lo a alguns fornecedores que, conhecidos da Administração, possam atender suas necessidades naquele certame. Nem isso, pois para evitar qualquer suspeição já de antemão excluímos o convite do escopo deste artigo.

Quanto ao convite, o e. Tribunal de Contas de União expediu acórdão em que assim decidiu sobre uma licitação dentro do sistema “S”:

“4. Na oportunidade, foi suscitado o entendimento estabelecido no Acórdão nº 297/2009-Plenário, que somente considera irregular a situação em apreço quando a participação concomitante das empresas se der em:

i. convite;

ii. contratação por dispensa de licitação;

iii. existência de relação entre as licitantes e a empresa responsável pela elaboração do projeto executivo; e

iv. contratação de uma das empresas para fiscalizar serviço prestado por outra.” (TC 019.123/2011-6. Natureza: Agravo.).

Ainda que não se consiga compreender o item ii, os três demais são claros: o e. TCU entende que apenas em um dado convite não podem empresas do mesmo grupo participar, e o motivo disso é que a competitividade sofre abalo quando é o mesmo grupo que compete entre si, por várias empresas de um só dono. Esse problema desaparece entretanto em concorrências, em tomadas de preços e em pregões, como o próprio TCU reconhece.

Sim, porque em uma concorrência existe uma absoluta universalidade de possíveis fornecedores. Em uma tomada de preços, se o ente público licitador tem um cadastro de fornecedores, então por força do [ultimo dispositivo citado, parte final, e como se irá concluir adiante, não se pode limitar previamente o número de participantes ! Esse mesmo acórdão do e. TCU, acima transcrito, fulmina o edital que proíba previamente a participação de empresas do mesmo grupo, a não ser, repita-se, em caso de convites.

E em um pregão multiplique-se a abertura e a impossibilidade de se direcionar viciosamente o certame, pois que o universo dos licitantes será absolutamente imponderável, e apenas se dará a conhecer no momento da realização, pois que qualquer licitante poderá a qualquer momento aparecer do nada, brotando espontaneamente para engrossar o número de interessados e para dificultar conluios, acertos ou arranjos.

VI - Se vem a Administração a saber, no desenrolar do certame, que dois ou mais participantes, pessoas jurídicas distintas, empresas separadas e autônomas cada qual com sua identidade empresarial e sua personalidade jurídica independente, pertencem ao, ou integram o, mesmo grupo, ou têm os mesmos sócios, ou têm sócios familiares entre si, ou entre si associados por algum modo admitido em direito, tudo o que tem a fazer é prosseguir desassombradamente o certame.

Sim, claro, e jamais proceder qual criança assustada ante algum fato inesperado, paralisando o certame de supetão ou quase em desespero, como se diante de seus olhos houvera irrompido o Satanás de sete barbas cuspindo chumbo derretido. Alude-se a isso, desse modo quase debochado porque amiúde algo, assim mesmo, ocorre em todo rincão da Administração pública brasileira.

Não deve para ninguém existir motivo de qualquer inquietação a simples constatação de que alguns dos licitantes têm origem no mesmo núcleo associativo, ou na mesma família, ou pertencem a parentes, ou aos mesmos sócios ou diretores, ou a marido e mulher. É juridicamente tão relevante constatar esse fato quanto o de se a capa da documentação de cada licitante é de uma cor diversa, ou se o papel sulfite de todos é de formato A-4, ou se algum é diferente.

Se os mesmos sócios constituíram empresas diferentes, sempre dentro do direito e das regras jurídicas que lhes eram aplicáveis, por alguma razão o fizeram - e não foi para divertimento. Se juridicamente o puderam fazer, e se pagaram para fazê-lo, e se corre cada um os riscos da empreitada, então devem corolariamente poder desfrutar os direitos que cada empresa isoladamente passou a ter, sem que nesse plexo de direitos possa interferir, um dia, o só fato de que exista outra empresa, de algum modo associada ou vinculada, também ocasionalmente participando da mesma licitação. O constitucional e livre exercício das profissões o assegura.

Nunca ninguém se olvide de que se uma empresa vence outra do mesmo empresário, então a mesma pessoa física está, como se disse ao início, ganhando de um lado e perdendo de outro, ou seja, em outros termos, derrotando a si mesmo. Mas as pessoas jurídicas nada têm com isso, e cada qual simplesmente está a exercer seus direitos comerciais, no estado democrático de direito ao qual todas pertencem e sob cujas regras foram instituídas.

VII - Jamais se confunda a pessoa jurídica com a pessoa física que a detenha - ninguém cometa esta infantilidade que reduz o direito a pó.

Fossem confundíveis aquelas duas realidades, então inexistiria qualquer razão para que existissem empresas. Não fora para que alguma vantagem, algum privilégio, alguma prerrogativa detivessem com relação aos homens que a instituíram - de natureza comercial, tributária, fiscal, institucional -, então nem uma empresa teria razão de ser em todo o planeta.
O anterior Código Civil brasileiro rezava:

“Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.”

E o atual Código Civil, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2.002, preconiza, semelhantemente, que

“Art. 52 Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.”,

sendo que pelo art. 50 apenas em caso de abuso da personalidade jurídica o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério público quando for o caso, que os efeitos de certas obrigações atinjam os bens particulares dos sócios – o que em absoluto e jamais é o caso aqui enfocado.Nada portanto tem a ver, como regra basilar e em casos regulares, a pessoa jurídica com as pessoas físicas que a criaram.

Assim é desde que a primeira pessoa jurídica foi instituída, e a doutrina não poderia dizê-lo diferente.

VIII - Washington de Barros Monteiro é um dos civilistas a realçar a fundamental diferença entre uma e outra espécie de pessoas:

“Outras disposições: - A teoria da personalidade jurídica é dominada por alguns princípios fundamentais: a) a pessoa jurídica tem personalidade distinta da de seus membros (universitas distat a singulis).” (In Curso de direito civil, 27ª ed. Saraiva, SP, 1.998, p. 101, com grifos originais).
De mesmo sentir é Silvio Rodrigues, para quem

“Na grande maioria dos casos, tais entes são constituídos pela união de alguns indivíduos; mas o que parece inegável é que a personalidade destes não se confunde com a daqueles, constituindo, cada qual, um ser diferente. Assim, o acionista de uma organização bancária não se confunde com esta; o sócio de um clube de uma sociedade limitada é um ser distinto da referida sociedade.

A estes seres, que se distinguem das pessoas que os compõem, que atuam na vida jurídica ao lado dos indivíduos humanos e quais a lei atribui personalidade, ou seja, a prerrogativa de serem titulares do direito, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou pessoas morais.

Pessoas jurídicas, portanto, são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil.” (In Direito civil, 18ª ed. Saraiva, SP, 1.998, p. 66, com grifos originais). 

Não diriam diverso tais luminares do direito das gentes, nem diferente o fazem os demais, nem no Brasil nem em país institucionalizado algum

O Dicionário jurídico,planejado, organizado e redigido por J. M. Othon Sidou assim consigna estes verbetes:

“Pessoa Jurídica (1) Dir. Civ. Ente criado pela técnica jurídica, como unidade orgânica e estável e pessoas para fins de natureza pública ou privada, completamente distinta dos indivíduos que o compõem.” (In Dicionário jurídico, 4ª ed. Forense Universitária, RJ, 1.996, p. 594, com grifos originais).

O eminente juslexicólogo Pedro Nunes ensina, a seu turno:

“jurídica, a compreendida por uma entidade coletiva abstrata, legalmente organizada com fins políticos, sociais, econômicos e outros a que se destine, com existência autônoma, independente dos membros que a integram. É sujeito, ativo ou passivo, de direitos e obrigações.

As pessoas jurídicas são distintas das dos membros que as constituem.” (In Dicionário de tecnologia jurídica, 12ª ed. Freitas Bastos, RJ, 1.990, p. 652, com grifos originais).
E o magnífico e festejadíssimoVocabulário jurídico, de De Plácido e Silva, atualizado por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves, consagra as diferenças referidas no seguinte verbete:
“PESSOA JURÍDICA. Em oposição à pessoa natural, expressão adotada para indicação da individualidade jurídica constituída pelo homem, é empregada para designar as instituições, corporações, associações e sociedades, que, por força ou determinação da lei, se personalizam, tomam individualidade própria, para constituir uma entidade jurídica, distinta das pessoas que a formam ou a compõem.” (In Vocabulário jurídico, 18ª ed. Forense, RJ, 2.001, p. 609, com grifos originais).

Nem, portanto, os dicionários especializados permitem confundir pessoas jurídicas com pessoas naturais ou físicas, as quais em direito são tão semelhantes quanto um motorista e seu automóvel, e tão suscetíveis de confusão quanto aqueles.

IX - Se no direito civil a confusão entre pessoas jurídicas e físicas é inviável, também no ramo do direito administrativo, e precisamente em matéria de licitação, a confusão é impossível.

Luciano Ferraz, no Cap. IV - “Casuística, perguntas e respostas” - de sua monografia sobre o tema das licitações, respondendo à freqüente indagação que acaso constitui o objeto da indagação do consulente, assim respondeu:

“Poderão participar da licitação uma ou mais empresas que possuam sócios em comum?

Em princípio, nada obsta essa participação, já que a personalidade jurídica da sociedade não se confunde com a de seu sócio, salvo se comerciante individual.” (In Licitações - estudos e práticas, ed. Esplanada, RJ, 1.998, p. 108).

E é de observar que também a jurisprudência toma a mesma direção até aqui apontada.

O e. Superior Tribunal de Justiça, Primeira Turma, REsp. nº 51.540-8-RS, relator Min. Demócrito Reinaldo, j. em 15/12/97, assim já tem decidido:

“Restaria então ser apreciada a alegação de maltrato ao art. 20 do Código Civil, este sim prequestionado, e que, segundo sustenta o recorrente, restou violado, pois o acórdão hostilizado “considerou, de forma equivocada, não ter havido a competitividade na licitação, pelo fato das empresas que participaram do certame terem um sócio em comum. Ora, o fato das empresas que participaram da licitação terem um sócio comum é irrelevante, porquanto as pessoas jurídicas têm existência distinta dos seus membros” (fl. 276). (...)

É certo que o sistema e a lei cuidam da distinção da personalidade jurídica da sociedade daquela atinente aos que a compõem (v.g., Código Civil, art. 20; Dec.-lei nº 7.661, art. 5º) sendo correto que isto é produto do desenvolvimento do direito e com vistas a permitir-se a constituição de sociedades com limitação da responsabilidade dos sócios, para que empreendimentos alcancem vulto que a pessoa natural, isolada, não alcançaria.” (In BLC - Boletim de licitações e contratos, ed. NDJ, SP, junho/98, p. 328/9, com grifo nosso no primeiro parágrafo). 

X - Em freqüente questão veiculam-se hipóteses de associação entre pessoas físicas detentoras de diferentes pessoas jurídicas, seja a vinculação social, patrimonial, associativa, matrimonial, ou a que mais for.

Não constitui exceção um eventual vínculo matrimonial - e se alude a essa particular hipótese em face da sua curiosidade -, a tudo o que até aqui foi declinado acerca da inconfundibilidade entre pessoas físicas e pessoas jurídicas.

Tanto faz que a associação na constituição das empresas seja matrimonial, ou que seja comercial, ou que seja por outros vínculos familiares ou de parentesco, pois que juridicamente, para este efeito, todos dão no mesmo, e constituem uma só realidade: a vinculação, seja qual for, matrimonial ou não, jamais tem o condão de inabilitar, ou impedir, ou obstaculizar, ou travar, ou inviabilizar a participação de todas no mesmo certame licitatório - sobretudo em se tratando de modalidades licitatórias abertas pela lei a uma imprevisível e indefinível universalidade de participantes, como por excelência são os pregões e a concorrência, e um pouco menos a tomada de preços (apenas por causa do cadastramento prévio necessário, o que de resto é também factível a qualquer fornecedor interessado).

Quando se fala de concorrências acorre a definição ampla, indiscriminada e absolutamente generalizante do art. 22, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que abre a modalidade a todo e qualquer interessado que previamente se habilite nos termos da mesma lei. Então, qualquer discrimen administrativo restaria evidentemente ilegal e fraudulento apenas porque os sócios dos licitantes diversos são associados.

Já quanto à modalidade da tomada de preços, reza a lei nacional de licitações e de contratos administrativos:

“Art. 22 São modalidades de licitação: (...)

§ 2º Tomada de preços é a modalidade de licitação entre interessados devidamente cadastrados ou que atenderem a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação.

Assim sendo, resta virtualmente inviável adivinhar-se quantos licitantes participarão da tomada de preços, pois basta que uma centena deles se habilite na forma da lei para que todos possam participar - e se nessa centena dezoito empresas pertencerem aos mesmos sócios, ou se quatro forem de uma mulher e quatro do seu marido, ou se uma for de um sócio e cada outra de um seu cunhado ou genro, o que juridicamente se poderá concluir é: sorte deles...

Nada mais, pois que cada empresa é um mundo isolado e autônomo, em direito. Independe do que quer que seja, ou de quem quer que seja alheio. Tem vida própria, capaz de assumir direitos e obrigações, e de contratar e de ser contratado sob sua conta e risco, e responsabilidade individual, em juízo e fora dele. Cada qual tem contabilidade própria, e será fiscalizada individual e separadamente. Terá bom êxito ou fracassará retumbantemente, porém sempre em caráter singular, isolado, autonômico, independente, incomunicável e desvinculado da vida das pessoas físicas que lhe sejam societariamente detentoras.

Aplicação do direito não é caça a fantasmas, nem pode ser. E nem pode o direito ser jogo de aparências, como o é o teatro de sombras, mas confrontação e intercombinação de fatos jurídicos, de realidades legais, de posturas institucionais predeterminadas, positiva e objetivamente.

Se o direito civil, e também o direito comercial, separam com absoluto rigor a pessoa física da jurídica, e se a lei de licitações em momento algum mistura ou confunde a ambas para nenhum efeito - como nunca o faria -, a ninguém que aplique esses direitos é dado subvertê-los para confundir água e óleo, em favor ou em desfavor de quem quer que seja.

XI - A quem insistir em que se participam empresas correlacionadas estar-se-á rompendo a regra (de resto principiológica) do sigilo das propostas, prevista no art. 43, inc. II, da Lei nº 8.666/93, objeta-se com o argumento de que não é o licitante quem precisa manter o sigilo de sua proposta, mas única e exclusivamente a Administração, e ninguém mais, até a abertura.

Se todos os licitantes quiserem anunciar em público e voz alta, antes, durante ou após a abertura de suas propostas, o seu conteúdo e as suas condições, ou se quiserem jogar de helicóptero cópias das suas propostas antes que sejam abertas, ou se as quiserem divulgar previamente na televisão, na internet ou no rádio, é claro que podem fazê-lo de modo absolutamente livre e desimpedido. Nada os impede, nem nunca impediu sequer por um segundo em toda história do direito, já que estão abrindo mão de um direito exclusivamente seu, particular e no qual a ordem pública não está envolvida.

Tal qual todo cidadão pode declarar em quem irá votar ou em quem votou na eleição para seu governante - inobstante a regra do voto secreto -, também em licitação essa regra vale por inteiro como proteção ao segredo comercial do particular, já que é apenas o poder público, o qual recebe os envelopes, que está obrigado ao sigilo e à custódia de proposta, intocada e indevassada, até sua abertura, quando então se torna pública.

Assim, é o poder público que está proibido de revelar o conteúdo das propostas em licitação até que no momento adequado sejam abertas, como é o poder público que está proibido de exigir a declaração do voto de cada eleitor, mas nunca o próprio eleitor, nem o licitante, de voluntariamente os declarar onde quer que seja.

O princípio do sigilo das propostas foi construído contra a Administração licitadora, como um limite à sua atuação e ao seu poder, e jamais contra o particular licitante, pois que nenhum sentido teria num estado em que todos têm liberdade de revelar, o que bem quiserem e a quem bem quiserem, a propósito de seus interesses comerciais. 

Guardar o sigilo das propostas é um direito do licitante contra a Administração pública, direito esse que lhe é dado pela lei em atenção a seu interesse privado e particular, e é por isso também um dever da Administração para com aquele interesse particular do licitante, porém jamais constitui qualquer dever do licitante.

O licitante, como o eleitor, guarda os segredos que bem quiser, mas também revela a quem quiser que seja. Quem não revela os seus segredos é o poder público, jamais, se a lei disso o impede.

XII - Em conclusão, visto o exposto, responde-se à fundamental indagação, objeto deste artigo e exposta ao início, de modo negativo.

Jamais em direito, seja de licitações, seja do ramo que for, poderá o aplicador baralhar os conceitos de pessoa jurídica com o de pessoa física para pretender prejudicar o direito de empresas, por qualquer modo associadas, de livre e desembaraçadamente participarem de uma mesma licitação, apenas pelo fato de que os sócios de uma são associados, ou economicamente conglomerados, ou familiares, ou matrimonialmente vinculados a sócios de outra.

Foram eles não apenas associados ou até mesmo casados entre si, mas as mesmas pessoas físicas, ainda assim nenhum prejuízo poderia ser oposto por ninguém à participação plena de todas as suas empresas no mesmo certame licitatório apenas por esse fato, vez que no direito aplicável tal circunstância não apresenta nem contém a mínima relevância.

Ressalva-se o caso do convite, e não porque a lei o exclua mas por simples lógica: se os convidados são sabidamente do mesmo grupo, compromete-se inevitavelmente a competitividade essencial ao certame.




fonte: www.plenum.com.br  

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